Era 5 de dezembro de 2014. Durante uma audiência pública no auditório do 11º andar da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), filhos e netos de perseguidos políticos durante a ditadura militar receberam um pedido oficial de desculpas do Estado. Esse momento esperado há muito tempo foi verbalizado por representantes da Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro (CEV-Rio), criada pela Lei Estadual 6.335/2012 para apurar delitos e atos antidemocráticos praticados por forças do Estado durante o regime militar que se instaurou após o golpe de 1964.
### “Esse pedido de desculpas tem um sentido muito forte”
“Até hoje eu fico arrepiada toda vez que me lembro desse momento. Parece uma bobagem, mas esse pedido de desculpas tem um sentido muito forte”, diz a professora universitária Lígia Maria Mota Lima Leão de Aquino. A audiência marcou a fundação do Grupo de Filhos e Netos por Memória, Verdade e Justiça, que agora completa 10 anos de existência. Ao longo desse tempo, os membros do grupo passaram a reconhecer os “efeitos transgeracionais” provocados pela violência de Estado em suas vidas.
Para relembrar essa trajetória e celebrar a união, o grupo se reuniu novamente no auditório da Uerj no último dia 5. Lígia, que se apresenta pelo nome completo, menciona que por trás de seus sobrenomes há diversos parentes que foram perseguidos pelos militares.
### Efeitos da Ditadura na Família
Hoje docente na Faculdade de Educação da Uerj, Lígia reflete sobre os impactos da ditadura na sua família: “Meu avô era o jornalista Pedro Mota Lima. Ele foi diretor do Tribuna Popular e era do Partido Comunista. Já no Ato Institucional número 1, o nome do meu avô e de dois tios estavam lá como pessoas cassadas.” Ela relata que seus tios não apenas perderam seus direitos políticos, mas também seus empregos no Banco do Brasil, um deles foi para o exterior e o outro foi preso.
A celebração do grupo teve início com um depoimento em vídeo da artista e professora Rita Maurício, filha do ex-preso político José Luiz Maurício. Rita compartilhou que as torturas deixaram seu pai louco e que sua família, especialmente sua mãe, teve que abdicar de projetos pessoais para cuidar dele. “Aquela árvore que eu gostava tanto de brincar e que depois meu avô cortou para que meu pai não tentasse mais se enforcar ali”, contou.
### Efeitos Transgeracionais
Para Rita, essa atmosfera familiar prejudicou seu desenvolvimento durante a infância, resultando em baixa autoestima. Mãe de dois filhos, ela reconhece que comete erros similares aos da sua mãe. “Família para mim sempre foi difícil de assimilar. O fato de muitas vezes família ser para mim um sinônimo de inferno tem tudo a ver com sequelas emocionais que a ditadura provocou na minha família.”
### Clínicas do Testemunho
O Grupo de Filhos e Netos por Memória, Verdade e Justiça surgiu como um desdobramento do projeto Clínicas do Testemunho, que oferecia atendimento psicológico aos perseguidos políticos. Com o tempo, terapeutas perceberam os efeitos transgeracionais e propuseram estender a iniciativa para incluir filhos e netos.
“O projeto cumpria um papel de reparação, porque a violência do Estado não foi apenas física, mas também psicológica”, explica Lígia. Através de atendimentos em grupo, os filhos e netos dos perseguidos políticos começaram a se organizar, mantendo contato pelas redes sociais e criando uma agenda de atividades.
### Mudança de Rumo
Para alguns, o encontro com a história familiar gerou mudanças significativas. A advogada pernambucana Rose Michelle, sobrinha de Rosane Alves Rodrigues, ex-diretora do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Universidade de Pernambuco, sentiu a necessidade de compreender sua história familiar após a eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Especialista em direito empresarial, Rose passou a atuar em direitos humanos.
A professora e psicóloga Kenia Soares Maia, prima de Jessie Jane, também se engajou na luta por memória, verdade e justiça, sentindo a pressão do contexto político atual. “Eu me vi em pânico de viver tudo que o meu pai viveu, tudo que a minha prima viveu. E aí eu me vi obrigada a me engajar”, conta Kenia.
### Além da Terapia
Embora tenha surgido de um projeto terapêutico, o Grupo de Filhos e Netos por Memória, Verdade e Justiça atua em diversas frentes hoje. Kenia destaca a importância de um diálogo com a Defensoria Pública da União para levar um pedido de anistia coletivo à Comissão de Anistia, incluindo demandas como a facilitação de acesso aos arquivos e novas investigações sobre a Operação Condor.
A advogada Rosa Costa Quental enfatiza que a reinstalação da Comissão de Mortos e Desaparecidos, prometida pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, só aconteceu após pressão. “As medidas de reparação do passado são importantes para não repetição no presente”, afirma Rosa, cujos pais também foram vítimas da repressão.
Para Felipe Lott, historiador e neto de uma deputada assassinada, os casos recorrentes de violência policial no Brasil revelam que a ditadura nunca foi superada. “Esses casos estão arraigados na tradição brasileira”, conclui.
Fonte: EBC