Cartas de alforria impunham condições à liberdade de escravizados


Os cartórios de Salvador guardam registros valiosos que ajudam a entender como se deu a formação do povo brasileiro e as relações sociais que persistem no século 21. Em livros notariais do período colonial, escrivães documentaram transações de compra e venda de pessoas escravizadas, cartas de alforria, e testamentos de senhores e senhoras de escravos, além de homens e mulheres negros libertos.

A pesquisa de Urano de Cerqueira Andrade

Há décadas, esses documentos são o foco de pesquisa do historiador e professor Urano de Cerqueira Andrade, especializado em história social e econômica do Brasil Colônia. Coordenador do projeto "Digitalizando Fontes Manuscritas Ameaçadas: Os Livros de Notas da Bahia", financiado pela Biblioteca Britânica, Andrade é perito na digitalização e preservação de acervos documentais.

Nesse projeto, foram escaneados 1.465 livros notariais, abrangendo desde 1664 até o início da década de 1920. Dentro desse período, 19.726 cartas de alforria registradas de 1800 a 1855 foram tabuladas em planilhas, que incluem informações como nome da alforriada, idade, gênero, nome dos pais, origem, cor (preto ou pardo), ofício, valores pagos e condições impostas pelos senhores.

Citação em destaque

“Estudar história é estudar o passado, entender o presente e tentar melhorar o futuro”, afirma o historiador.

Entrevista com Urano Andrade

Agência Brasil: Quantos casos de pessoas escravizadas que conseguiram a alforria já identificaram?

Urano Andrade: Exatamente, 19.726 casos tabulados entre 1800 e 1855.

Agência Brasil: Há informações adicionais sobre as pessoas escravizadas?

Urano Andrade: Temos gênero, nome, idade, nação, origem ou cor. Os escravizados eram trazidos de regiões específicas do continente africano, e muitos eram identificados como ‘Angola’, ‘Cabinda’, ou ‘Calabar’. Também registramos ocupação, nome da mãe, nome do pai, data do registro da carta de alforria e condições impostas.

Agência Brasil: É possível mapear a origem dos escravizados da Bahia?

Urano Andrade: É genérico. Embora haja dados estatísticos, é necessário um estudo mais aprofundado para definições precisas. A partir de 1719, a presença dos nagôs, por exemplo, é significativa.

Agência Brasil: Que condições eram impostas para a alforria?

Urano Andrade: Aproximadamente 70% dessas alforrias eram condicionadas. Muitas vezes, o escravizado só recebia a alforria após a morte de seu senhor.

Agência Brasil: Como conseguiu ler documentos escritos em um português antigo?

Urano Andrade: Estudei paleografia e desenvolvi a prática de reconhecer as letras e abreviaturas específicas de cada escrivão.

Agência Brasil: A escravidão no Brasil foi menos cruel que em outros lugares?

Urano Andrade: Não. A escravidão em qualquer lugar é extremamente cruel. Existem histórias chocantes, como a de uma mãe que, após se libertar, comprou sua filha vendida em Salvador.

Agência Brasil: A documentação sobre a escravidão no Brasil é insuficiente?

Urano Andrade: Isso é um mito. A documentação é vasta na Bahia, onde temos um dos melhores arquivos do Brasil.

Agência Brasil: Além das cartas de alforria, existem testamentos de pessoas libertas?

Urano Andrade: Sim, há documentação que pode ser tabulada.

Agência Brasil: Podemos acompanhar a vida de algumas pessoas escravizadas?

Urano Andrade: É possível, a partir de registros de batismo e de compra e venda.

Agência Brasil: A Igreja Católica teve um papel na naturalização da escravidão?

Urano Andrade: Exatamente. Ela forneceu aval religioso, mas as cartas de alforria também mostram gestos de bondade, como libertações em testamentos.

Agência Brasil: O medo do inferno é uma preocupação atual?

Urano Andrade: Com certeza.

Agência Brasil: Como avalia o ensino de história da África nas escolas?

Urano Andrade: Há professores engajados, mas é necessário melhorar a formação dos alunos, que muitas vezes se baseiam apenas em livros didáticos.

Agência Brasil: A descoberta de que Maria Quitéria tinha escravizados causou controvérsia. O que isso revela?

Urano Andrade: Não podemos ver o passado com os olhos do presente. A dinâmica da época permitia tal prática, e isso deve ser contado.



Fonte: EBC

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