Cientistas sinalizam riscos sem precedentes na criação de bactérias espelho


Um grupo de 38 cientistas, atuando em nove países, expressou sérias preocupações sobre a criação de bactérias espelho — organismos sintéticos cujas estruturas moleculares são invertidas em relação àquelas encontradas na natureza. Essas criações poderiam representar uma ameaça significativa para humanos, animais e plantas, colocando-os em risco de exposição a patógenos perigosos. Embora a ciência e a tecnologia necessárias para desenvolver esses organismos estejam a uma década ou mais de distância, os pesquisadores afirmam que os riscos potenciais são "sem precedentes" e "negligenciados".

No relatório divulgado na edição de 12 de dezembro da revista Science, os cientistas destacaram: "Movidos pela curiosidade e possíveis aplicações, alguns pesquisadores começaram a trabalhar na criação de formas de vida compostas inteiramente por moléculas biológicas espelhadas". Segundo eles, "tais organismos espelho constituiriam um desvio radical da vida conhecida, e sua criação requer consideração cuidadosa".

A quiralidade, ou lateralidade, é uma característica fundamental de toda vida conhecida. O DNA e o RNA, por exemplo, são formados por nucleotídeos "destros", enquanto as proteínas são compostas por aminoácidos "canhotos". As interações entre moléculas frequentemente dependem dessa quiralidade, semelhante a como uma luva direita não se encaixa em uma mão esquerda.

Os especialistas, que incluem profissionais de diversas áreas, como imunologia e biologia evolutiva, inicialmente eram céticos quanto aos riscos representados pelas bactérias espelho, mas agora estão "profundamente preocupados". Jonathan Jones, coautor do relatório e líder de grupo no The Sainsbury Laboratory em Norwich, Reino Unido, afirmou: "É um gênio que você não quer deixar sair da garrafa. O risco de algo ruim acontecer é baixo, mas as consequências de algo ruim acontecer são realmente terríveis".

Os cientistas recomendam que, a menos que surjam evidências convincentes de que a vida espelho não representaria perigos extraordinários, as pesquisas nesse campo não deveriam ser permitidas. Financiadores devem deixar claro que não apoiarão tal trabalho.

Os autores do artigo basearam suas preocupações em um relatório técnico de 300 páginas do J. Craig Venter Institute, que detalha a viabilidade e os riscos das bactérias espelho. O documento menciona que a criação de vida espelho é uma aspiração de longo prazo de vários laboratórios e financiadores de pesquisa. A ideia é entender melhor a vida e auxiliar no desenvolvimento de medicamentos e outras terapias.

O relatório enfatiza que não há uma ameaça iminente e que existem consideráveis obstáculos técnicos para a criação das bactérias espelho. Para que isso ocorra dentro de uma década, seriam necessários esforços substanciais em escala e orçamento, comparáveis ao Projeto Genoma Humano.

Os sistemas imunológicos dependem do reconhecimento de formas moleculares específicas em bactérias invasoras. Se essas formas fossem refletidas, como nos organismos espelho, o reconhecimento poderia ser prejudicado, levando a defesas imunológicas falhas e deixando organismos vulneráveis a infecções. "Não podemos descartar um cenário em que uma bactéria espelho atue como uma espécie invasora em muitos ecossistemas, causando infecções letais generalizadas", argumentam os cientistas.

Jones acrescentou que as bactérias espelho seriam extremamente difíceis de detectar em plantas, e mesmo que não crescessem bem inicialmente, as mutações poderiam favorecê-las ao longo do tempo.

Tom Ellis, professor de engenharia genômica sintética do Imperial College, ressalta que a vida espelhada ainda é mais uma ideia de ficção científica do que uma realidade científica. "Concordo com as preocupações, embora sejam muito especulativas, considerando que a pesquisa está atualmente em um estágio muito inicial e longe de ser qualquer ameaça", disse Ellis, que não participou da pesquisa.

Os cientistas têm tentado criar vida sintética utilizando moléculas não espelhadas há mais de uma década, mas ainda estão distantes de conseguir células autossustentáveis que se dividam, replicem e evoluam. "Este trabalho de ‘célula sintética’ já é desafiador o suficiente com moléculas normais. Fazer tudo isso apenas com moléculas espelhadas torna tudo mil vezes mais difícil", concluiu Ellis.



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